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A impenhorabilidade do bem de família sob a ótica do Superior Tribunal de Justiça

Data: 09/08/2019 16:00

Autor: Thomas Ubirajara Caldas de Arruda*

 
   img Antes de adentrarmos no tema central, mais especificamente em relação às situações em que o bem de família poderá sofrer os efeitos da penhora, é necessário tecer algumas considerações a respeito deste instituto. O que é o bem de família? Quais são os fundamentos legais e constitucionais da proteção ao bem de família?
 
    Pois bem. Em suma, bem de família consiste no “imóvel utilizado como residência da entidade familiar, decorrente de casamento, união estável, entidade monoparental, ou entidade de outra origem, protegido por previsão legal” (TARTUCE, Flávio. Manual de direito civil: volume único 7. ed. – Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2017).
 
    Para Paulo Lobo, “é o imóvel destinado a moradia da família do devedor, com os bens móveis que o guarnecem, que não pode ser objeto de penhora judicial para pagamento de dívida. Tem por objetivo proteger os membros da família, que nele vivem da constrição decorrente da responsabilidade patrimonial, que todos os bens econômicos do devedor ficam submetidos, os quais, na execução, podem ser judicialmente alienados a terceiros ou adjudicados ao credor” (Direito Civil: Famílias. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2014).
 
    Trata-se, portanto, da propriedade imóvel utilizada pela família para fins de moradia permanente, sendo que para incidência da regra de impenhorabilidade conforme prevista em lei, é indispensável que a entidade familiar resida no local ou dependa do seu aluguel para manutenção de sua subsistência.
 
    É de rigor destacar que o Superior Tribunal de Justiça ampliou o conceito de bem de família, para abranger, também, “o imóvel pertencente a pessoas solteiras, separadas e viúvas”, entendimento cristalizado no enunciado de súmula n. 364.
 
    São duas as espécies de bem de família: o bem de família legal, decorrente da própria condição de se tratar de única moradia do núcleo familiar, ou seja, possui essa natureza independentemente de sua inscrição no cartório; e o bem de família convencional ou voluntário, que é aquele oriundo do ato de vontade da entidade familiar, instituído mediante a formalização do registro no cartório de imóveis.
 
    A impenhorabilidade do bem de família legal possui previsão no art. 1º da Lei n. 8.009/1990, o qual disciplina que “o imóvel residencial próprio do casal, ou da entidade familiar, é impenhorável e não responderá por qualquer tipo de dívida civil, comercial, fiscal, previdenciária ou de outra natureza, contraída pelos cônjuges ou pelos pais ou filhos que sejam seus proprietários e nele residam, salvo nas hipóteses previstas nesta lei” (art. 3º da Lei n. 8.009/90). Dentro das regras de proteção contra a penhora compreende-se, ainda, “o imóvel sobre o qual se assentam a construção, as plantações, as benfeitorias de qualquer natureza e todos os equipamentos, inclusive os de uso profissional, ou móveis que guarnecem a casa, desde que quitados”.
 
    Já a impenhorabilidade convencional ou voluntária encontra amparo no art. 1.711 do Código Civil. Referido dispositivo estabelece que “podem os cônjuges, ou a entidade familiar, mediante escritura pública ou testamento, destinar parte de seu patrimônio para instituir bem de família”. A parte final do dispositivo acrescenta a ressalva de que o valor do bem convencionado não poderá ultrapassar um terço do patrimônio líquido existente no momento do ajuste. Além disso, a sua alienação apenas poderá se efetivar com a autorização dos interessados, conforme disciplina o art. 1.717 do Código Civil.
 
    Dito isto, é preciso delimitar o âmbito de incidência das regras de impenhorabilidade, já que em determinadas situações o devedor se utiliza da proteção legal conferida ao imóvel para firmar negócios jurídicos economicamente inviáveis e oferecem o referido bem como garantia fiduciária, como por exemplo, nos contratos de financiamento.
 
    Assim como nos casos em que o devedor investe grande parte do seu patrimônio em imóvel excessivamente caro e luxuoso, com o intuito de obstar eventual penhora, a impenhorabilidade vem sendo afastada pelo STJ em determinadas situações em que as condutas dos devedores contrariam a boa-fé, princípio basilar que deve permear todos os negócios jurídicos.
 
    Em relação à ocorrência de fraude à execução, por exemplo, o Tribunal já havia firmado o entendimento no sentido de ser possível desconstituir a impenhorabilidade. Embora a Corte Superior tenha conferido a mais ampla proteção ao bem de família, sempre atribuindo a interpretação mais favorável ao art. 3º da Lei n. 8.009/90, na ocasião do julgamento do REsp n. 1.494.394/SP esclareceu que “essa proteção não pode ser utilizada para abarcar atos diversos daqueles visados pela Lei 8.009/1990, tornando imperioso o afastamento da proteção quando verificada a existência de atos fraudulentos ou constatado o abuso de direito pelo devedor que se furta ao adimplemento da sua dívida, sendo inviável a interpretação da norma sem a observância do princípio da boa-fé”.
 
    Mais recentemente, vemos dois julgados que reafirmam a compreensão acima, ou seja, para afastar a impenhorabilidade em decorrência de oferecimento do bem de família como garantia em contratos de financiamento e empréstimos com instituições financeiras.
 
    Trata-se do REsp n. 1.560.562/SC (julgado em 02/04/2019), de relatoria da ministra Nancy Andrighi, o qual consignou que “não pode o devedor ofertar bem em garantia que é sabidamente residência familiar para, posteriormente, vir a informar que tal garantia não encontra respaldo legal, pugnando pela sua exclusão” e do REsp n. 1.559.348/DF (julgado em 18/06/2019), de relatoria do ministro Luís Felipe Salomão, no qual se construiu similar interpretação. Neste último, o magistrado se convenceu de que “o abuso do direito de propriedade, a fraude e a má-fé do proprietário devem ser reprimidos, tornando ineficaz a norma protetiva, que não pode conviver, tolerar e premiar a atuação do agente em desconformidade com o ordenamento jurídico”.
 
    Como se vê, há uma tendência da jurisprudência de flexibilizar a proteção ao bem de família quando restar evidente que o devedor abusou do seu direito ou empreendeu medida que contraria a cláusula geral da boa-fé objetiva contratual.
 
    No caso dos empréstimos, financiamentos e outros contratos similares, parece não haver dúvidas de que a indicação do bem de família como garantia fiduciária implica na desconstituição da impenhorabilidade deste bem. Pensar de modo contrário é o mesmo que avalizar a má-fé e transformar a proteção legal em um escudo em favor de planejadas ilegalidades.
 
    Mas nada é tão simples quanto parece, pois sabemos que na prática os casos concretos levados ao Judiciário carregam contorno tão particulares que a lei ou os entendimentos construídos jurisprudencialmente devem ser analisados com destacada atenção, com os olhos sempre voltados ao direito constitucional – fundamental - à moradia.
 
    Assim, a título de exemplificação, pode ocorrer de um devedor ter oferecido como garantia, na época do ajuste contratual (financiamento bancário), um determinado bem imóvel X, o qual naquele momento não era utilizado para fins de moradia e não era o único imóvel da família, pois possuía, também, os imóveis Y e Z. Suponhamos que após alguns anos, em virtude de crise financeira, a família se mudou para o imóvel X, onde os custos de manutenção eram bem inferiores aos demais. Com o tempo, a crise se agravou e os imóveis Y e Z precisaram ser alienados para pagar dívidas, restando apenas o imóvel X, local onde a família passou a residir. Ocorre que a situação financeira ficou tão difícil que o devedor começou a atrasar as parcelas do financiamento até não conseguir mais efetuar os pagamentos mensais, levando a instituição financeira a iniciar um processo de execução, requerendo a penhora do imóvel X.
 
    No hipotético cenário acima descrito, restou claro que o bem imóvel foi dado em garantia no contrato bancário por livre vontade da parte contratante, mas, no decorrer do contrato, se tornou o seu único bem imóvel e, ainda, o local de moradia sua e de sua família. A pergunta a ser feita é: seria razoável permitir a penhora do único imóvel da família, atualmente utilizado para fins de moradia?
 
    Nesse caso, é possível observar algumas peculiaridades que exigem uma análise mais acurada por parte do julgador. Deve-se analisar, em primeiro lugar, se, de fato, o imóvel X é o único bem imóvel do devedor e se está sendo utilizado como residência da entidade familiar. Outra questão que deverá ser avaliada é se as alienações dos demais imóveis foram estrategicamente planejadas e realizadas com o intuito de impedir a penhora do imóvel X, sob o pálio da impenhorabilidade do bem de família.
 
    Assim, o ponto de partida é a análise da narrativa fática e dos documentos apresentados, dos quais se permitirá extrair uma visão geral do contexto situacional da entidade familiar no aspecto da suposta crise econômica enfrentada e, por conseguinte, a inocorrência de abuso de direito ou má-fé do devedor.
 
    O direito fundamental à moradia prevalece, ao menos em regra, sobre o direito ao crédito, sobre o direito à livre iniciativa, bem como sobre outros de caráter meramente patrimonial. O seu núcleo essencial reflete o espaço mínimo existencial destinado a assegurar uma subsistência digna ao indivíduo, motivo pelo qual não deverá ser sacrificado descriteriosamente sob o argumento de que o devedor se encontrava no pleno exercício da sua autonomia de vontade.
 
    Não se pode concluir, portanto, que a mera indicação de determinado bem como garantia em um contrato seja suficiente para desconstituir a regra da impenhorabilidade do bem de família. Há limites significativos para a restrição (ou renúncia) de direitos fundamentais. Por isso, a eficácia da norma protetiva poderá ser excluída apenas excepcionalmente, repise-se, quando identificados o abuso do direito de propriedade, a fraude ou a má-fé do devedor, conforme o entendimento gravado pelo Superior Tribunal de Justiça.
 
*Thomas Ubirajara Caldas de Arruda é advogado licenciado, assessor jurídico na Procuradoria-Geral de Justiça do Estado de Mato Grosso, especialista em Direito Processual Civil pela Universidade Federal de Mato Grosso. 
 
 
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